Edson Nery da Fonseca

 

 

 Como falar sobre Edson Nery sem ser redutor, linear e datado? Como escrever sobre um ser tão complexo, tão prenhe de significados, de lutas, de polêmicas sem ser superficial. Este é um desafio complexo. A alegoria platônica da Caverna o representa bem. Sempre percebi o Edson Nery como aquele personagem que saiu da caverna, observou o mundo, percorreu seus meandros, se identificou com a modernidade. Percebeu o tamanho de sua aldeia, e compreendeu como poderia inseri-la em uma conjuntura de progresso. Celebramos hoje o centenário de seu nascimento com a publicação de uma entrevista concedida ao jornalista José Mário Rodrigues, em 11 de abril de 1982, assessorado por um time de peso da biblioteconomia Pernambucana.[1] Marcos Galindo. Recife, 6 de dezembro de 1921.

 [1] Texto publicado nos Cadernos de Biblioteconomia, Recife. [5] : 50-55, jun. 1982 , originalmente (Entrevista de Edson Nery da Fonseca a José Mário Rodrigues), transcrita do Jornal do Commercio (Recife) de, 11 de abril de 1982. Ver o line: https://www.brapci.inf.br/index.php/article/download/19615

Edson Nery da Fonseca:
“CANSEI-ME DA BUROCRACIA PEDAGÓGICA”.
Eu tinha vontade de fazer una, matéria sobre Bibliotecas, Biblioteconomia, como funciona o sistema bibliotecário, suas eficiências e deficiências e, sobretudo, o que vem sendó as Bibliotecas no Brasil, hoje, para a formação das novas gerações. Era muito assunto e, por isso, era necessário’ entrevistar um diretor de Biblioteca, mas eu não ·sabia o que perguntar. As vezes me dá um branco e fico pensando que parei no Universo ou entrei num redemoinho de sensações – desse que a gente sente apenas e não sabe definir nem se posicionar.
Foi quando me veio â ideia de reunir técnicas no assunto de Biblioteconomia, para entrevistar um nome de muita importância no Brasil: Edson Nery da Fonseca.

Convidei para participar dessa entrevista. Silvia Augusta Marques – Chefe da Divisão de Documentação da Sudene; Zoia Calmon Presidente da Associação Profissional. de Bibliotecários de Perambulo; Maria das Graças Lima Melo – Chefe do Departamento de Biblioteconomia da UFPB; Vera Lúcia Chianca e Catarina Petribu Bivar – Bibliotecárias da Sudene, Margarida Matheus de Lima – Diretora da Biblioteca Pública do Estado e Maria do Carmo Lima e Necy Barbosa, Bibliotecárias do Estado.

  Edson Nery da Fonseca para quem não conhece, é escritor, crítico literário, bibliotecário detentor de vários prêmios e possui mais de uma centena de trabalhos publicados. Iniciador, em-1949, no Recife, da modernização dos serviços de bibliotecas universitárias, com a reforma da Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife. Implantou a Biblioteca da Universidade de Brasília e fundou em 1950, o Curso de Biblioteconomia da Universidade Federal de Pernambuco. Foi diretor da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados da Universidade de Brasília. cargo este que exerceu até 1978. Atualmente (1982) exerce o cargo de Superintendente do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco.
Estudioso. competente, Edson Nery da Fonseca diz ser um peregrino da Biblioteconomia e “peregrino do absoluto” como León Bloy.[2] Possui o coração no Mosteiro de São Bento em Olinda; e os olhos nas praias, nos coqueiros, no céu, nos verdes mares do Recife.

José Mário Rodrigues

[2] N.E.: Léon Bloy (1846-1917) romancista, panfletário e ensaísta francês. BLOY, Léon. Le pèlerin de l’absolu: 1910-1912. Paris, Mercure de France, http://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/6362

SÍLVIA MARQUES – Como situa, no enfoque de uma cultura brasileira autêntica, em ênfase em sua própria criatividade a adoção pelos nossos centros de documentação e bibliotecas, de modelos estrangeiros para os sistemas de informação; mais ainda, a compra de bases de dados estrangeiras para esses sistemas.
EDSON NERY – O mais que economista Kenneth Booulding[3] observou que os progressos na comunicação oferecem aos países não desenvolvidos a oportunidade, que os países desenvolvidos não tiveram, de queimar etapas cientificas e tecnológicas, dando saltos que podem, em certas áreas do conhecimento, colocar um país como Portugal ao lado e até à frente de uma superpotência como os Estados Unidos. Não·vejo, portanto, com pessimismo a adoção de modelos estrangeiros por nossos sistemas de informação. Na era interplanetária em que já ingressamos a interdependência entre as nações é tão importante quanto a inter-relação entre as ciências, as artes e as tecnologias. O perigo de uma descaracterização cultural está menos na ciência do que em suas aplicações. E nestas a criatividade brasileira tem contribuído para evitar a adoção maciça de processos estrangeiros, como aconteceu por exemplo, com o projeto MARC (Machine Readable Catalog), de cuja segunda versão a bibliotecária Alice Príncipe Barbosa, de saudosa memória, retirou os elementos essenciais do brasileiríssimo projeto CALCO (Catalogação Legível por Computador).

 

[3] N.E. Edson Nery refere-se aqui ao economista britânico Kenneth Ewart Boulding (Liverpool, 18 de janeiro de 1910 – 18 de março de 1993)

 

SÍLVIA MARQUES – Que pensa da introdução, em nossos centros de documentação e bibliotecas de serviços automatizados: no tratamento dos documentos? Que resultados poderão advir de tal prática?
EDSON NERY– A automação dos processos- técnicos tem a enorme vantagem de liberar os bibliotecários para atividade·muito mais importantes que são as de auxílio aos leitores e assessoria aos pesquisadores. Deixemos os serviços-meios com os técnicos em computação e fiquemos com os serviços-fins, que são como “a melhor parte” de que nos fala o Evangelho, no episódio Marta-Maria.

ZOIA CALMON – Como as autoridades têm se comportado quanto ao reconhecimento do trabalho do Bibliotecário e que tem sido feito nesse sentido?
EDSON NERY – De modo geral, as autoridades brasileiras (governamentais e universitárias), não reconhecem a importância das bibliotecas porque elas próprias não se beneficiaram de bons serviços bibliotecários. O genial arquiteto e urbanista Lúcio Costa confessou-me uma vez que se esquecera de incluir um sistema de bibliotecas no Plano Piloto de Brasília porque nunca vira tal coisa no Brasil. Mas temos de proclamar exceções como, por exemplo, a de Linaldo Cavalcanti de Albuquerque na Reitoria da Universidade Federal da Paraíba e, agora, na Presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); ou a de Marcionilo de Barros Lins na Reitoria da Universidade Federal de Pernambuco; ou a de Darcy Ribeiro e todos os seus sucessores na Reitoria da Universidade de Brasília; ou as dos deputados Bilac Pinto e José Bonifácio na Presidência da Câmara dos Deputados; ou a do Ministério da Agricultura com a BINAGRI (Biblioteca Nacional de Agricultura); ou a de empresas publicas como a EMBRAPA e a EMBRATER; ou as de Darcy Closs e Claudio Moura Castro na CAPES. Peço desculpas dos eventualmente omitidos, mas o que pretendi ser foi menos exaustivo que exemplificativo.

MARIA DAS GRAÇAS MELO – Que motivo o levou a afastar-se das atividades docentes?
EDSON NERY – Afastei-me das atividades docentes (que exerci regularmente na então Universidade do Recife de 1948 a 1951 e na Universidade de Brasília de 1962 a 1980) por ter verificado, como Everett Reimer e Ivan Illich, que a “escola está morta”, como disse o primeiro em sua obra “School is Dead”. “Alternatives in Education” (1975).[4] Não acredito mais na eficácia da transmissão do conhecimento pelo diálogo tradicional professor-aluno, com aulas, exames, notas ou menções etc. Cansei-me da burocracia pedagógica e, nos últimos anos não houve nada mais penoso para mim do que tomar parte em reuniões de órgãos colegiados em todos os níveis do conselho departamental ao conselho universitário.

[4] N.E.: School is dead: An essay on alternatives in education (Penguin education specials) é o título do ensaio de Everett Reimer, “A escola morreu” sobre alternativas para educação e uma reflexão por que as escolas não funcionam, discorre resumidamente sobre os problemas que as escolas enfrentavam na década de 1970 para educar os alunos. Penguin, 1971. Publicado no Brasil em 1975, com o título “A Escola Está Morta” Everett Reimer. Francisco Alves ed. 1975.

MARIA DAS GRAÇAS MELO – Que sugere para melhorar a formação acadêmica no Brasil e, em particular, a da área de Biblioteconomia?
EDSON NERY – A pergunta fica prejudicada pela resposta à questão anterior. Se não acredito em formação acadêmica, nada poderei sugerir para aperfeiçoá-la. Direi, entretanto, que considero a biblioteca uma das alternativas para a escola; biblioteca e o museu. O bibliotecário deveria aproveitar a morte da escola para mostrar como a biblioteca pode contribuir com mais eficácia para a transmissão do conhecimento, para a educação permanente, para o aproveitamento das horas de lazer que são cada vez mais numerosas na sociedade pós-industrial anunciada entre outros por Gilberto Freyre (“On the Iberian Concept of Time” 1963) e Daniel Bell (“The Coming of Post lndustrial Society” 1975). Mas ela insiste em ficar atrelada a uma instituição obsoleta.

VERA LÚCIA CHIANCA- Considerando-se que o Bibliotecário dispõe dos instrumentos de educação para ajudar a reduzir o grau ele analfabetismo do País, um dos males que afligem o desenvolvimento econômico qual a posição do Bibliotecário em relação à comunidade carente de cultura?
EDSON NERY – A pergunta já contém na primeira parte de sua formulação uma resposta: se o bibliotecário dispõe de instrumentos adequados tanto para combater o analfabetismo como para promover a educação permanente, sua função em qualquer comunidade é a de educador e animador cultural.
VERA LÚCIA CHIANCA – Sabe-se que a quantidade de bibliotecas implantadas em pequenas comunidades está muito aquém do crescente número de serviços automatizados e controle de acervos. Diante desse quadro indagamos se estaria a cultura assim, ao alcance de todos?
EDSON NERY – É evidente que no Brasil a cultura não está ao alcance de todos. Uma das razões é a falta de bibliotecas públicas em pequenas comunidades, tanto urbanas como rurais. Os próprios bibliotecários preferem trabalhar em bibliotecas universitárias e especializadas, porque as instituições mantenedoras pagam ótimos salários. As bibliotecas especializadas brasileiras nada fica dever às congêneres estrangeiras inclusive na sofisticação de processos de disseminação da informação. Como os governos estaduais e municipais não podem pagar altos salários, as bibliotecas públicas são pobres de recursos bibliográficos e humanos.

CATARINA PETRIBU BIVAR – Os pesquisadores estão conscientizados do valor do Bibliotecário como base auxiliar nas suas pesquisas ou continuam tratando-os como simples arrumadores de livros?
EDSON NERY – Como os pesquisadores são atendidos pelas bibliotecas especializadas e estas já́ dispõem de boas coleções e de bibliotecários bem pagos, todos parecem conscientizados de que 1 hora na biblioteca pode poupar 10 horas no laboratório. Um bibliotecário especializado é indispensável ao especialista, numa época de explosão bibliográfica. Mas quando o bibliotecário só́ sabe o que aprendeu no curso de biblioteconomia pode cometer disparates até como “arrumador de livros”. São famosos os casos de “Raízes do Brasil”, de Sergio Buarque de Hollanda, alocados na seção de Botânica, de “Sobrados e Mocambos”, de Gilberto Freyre em Arquitetura e de “São Bernardo” de Graciliano Ramos, entre biografias de Santos.

MARGARIDA MATHEUS DE LIMA – Qual sua opinião sobre a rede de Bibliotecas Públicas e Escolares no Brasil?
EDSON NERY – As bibliotecas públicas e escolares são a vergonha da biblioteconomia brasileira pela pobreza de edifícios e acervos, por estarem fechadas quando os usuários mais necessitam delas e pelo próprio fato de não se constituírem redes regionais e nacionais.

MARIA DO CARMO LIMA – Como atrair um maior número de leitores em face do quase generalizado descaso que vem afetando o aprimoramento intelectual do nosso povo? Uma propaganda dirigida a favor do livro viria a contribuir para melhorar esta situação?
EDSON NERY – Eu aconselharia antes uma campanha em favor do não-leitor. Assim como Cristo disse que não, veio salvar os justos, mas os pecadores podemos dizer que o bibliotecário deve estar mais comprometido com o não-leitor do que propriamente com o que lê̂, e por tanto já́ está salvo. Transformar, o não-leitor em leitor e mais do que isso em usuário de todos .es meios de formação e informação: eis o que deveria. ser a missão do bibliotecário.

NECY BARBOZA – Como vê a atuação das Bibliotecas Públicas de nossa Região?
EDSON NERY – As bibliotecas públicas do Nordeste são muito pobres, sobretudo quando comparadas com as de São Paulo e do Paraná̃. Mas quando uma universidade como a Federal da Paraíba institui programas de mestrado em Educação e em Biblioteconomia com áreas de concentração voltadas para Educação de Adultos e Bibliotecas Públicas, respectivamente. temos esperança de que a situação pode melhorar.